Mostra de SP exibe ‘Guerra do Paraguay’, a obra-prima de Luiz Rosemberg Filho.
Matéria retirada do Estadão, por Rodrigo Fonseca.
Espécie de Viagem do Capitão Tornado sul-americana e brechtiana, aclamado no Cine PE, em maio, com elogios do tipo “a obra-prima nacional do ano”, o tratado metafísico Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg Filho, promete mobilizar a 40ª Mostra de São Paulo (cuja largada para o público está marcada para esta quinta), a partir deste fim de semana. Laureada com o prêmio da crítica e com um prêmio especial do júri pela contribuição histórica do realizador de A$$untina das Amérikas (1975) ao nosso audiovisual, o filme terá projeção nesta sexta, às 21h15m, no Espaço Itaú Frei Caneca e no sábado, às 14h, no Reserva Cultural, com uma última sessão dia 27, às 18h10, também ali no Frei Caneca.
E já foi confirmada a sua presença, nas telas do Rio de Janeiro, numa seleção paralela da Semana dos Realizadores (a se realizar de 23 a 30 de novembro, no Espaço Itaú).
Redescoberto pelo planisfério cinéfilo brasileiro desde a projeção de Linguagem em Recife, no Cine PE, em 2014, sendo alvo de retrospectivas, livros e homenagens mais do que merecidas (por sua coragem e, em primeiro lugar, por seu legado visual), Luiz Rosemberg Filho faz em Guerra do Paraguay uma dissertação sobre a inutilidade da morte nos campos de batalha. De um filme que abre e fecha com poemas, indo de Mario de Andrade a Maiakovski, só se pode (e se deve) esperar um descompromisso com as convenções narrativas de jornadas heroicas e de plenárias discursivas. A expectativa se concretiza: numa suspensão de pactos de descrenças, na traição ao realismo, uma jogabilidade estética teatral, brechtiana no verbo e alegórica na forma, desenha-se diante de nós, com quatro atores em afinação máxima. Patrícia Niedermeier, Ana Abott, Alexandre Dacosta (soberbo) e o sempre ótimo Chico Diaz semimascarado como “o homem que sangra” vociferam traumas em palavras e grunhidos. Traumas da latinidade, traumas do Brasil, com suas exclusões e contrarreformas de terra.
Chico Diaz é testemunha do conflito
Em sua trama, a Guerra do Paraguai chegou ao fim e os trapos humanos que dela sobreviveram contam os saldos do conflito para entender se a luta valeu a pena e se há ainda alguma luz a iluminar o túnel de possibilidades políticas à frente deles. Não por acaso, o cineasta escolheu filmar em preto e branco: no furor do combate, tudo é monocromático, tudo é sangue, tudo é ódio. Vinícius Brum fotografa uma paisagem campestre com uma rigidez de enquadramento espartana: a câmera, refém do horror, paralisa-se diante da desesperança. À frente dela, vemos um soldado brasileiro que bate seu tambor comemorando a derrota dos paraguaios (Dacosta, cuja face ganha contornos quase caricatos para debochar do real devastado). Este cruza com um esfarrapado ferido (Diaz) que nos mostra o quanto o Brasil dos 1800, imperial, é parecido com o Brasil da Dilma, sem ir contra, sem ir pró. É observação, não adjetivação. A conclusão é nossa: Diaz só faz ferir os paroxismos da atuação naturalista contemporânea, numa composição quase clownesca, felliniana.
No Satyricon de Rosemberg, o soldado Dacosta vai se surpreendido por uma visão do Belo – ou do que sobrou de Beleza após a ruína causada por canhões e fuzis – na pele de duas beldades: duas artistas de rua, uma verborrágica Ana Magnani de beira de estrada (Niedermeier, grandiosa) e uma murmurante doente mental (Abott). Lindas, cúmplices, fogosas, elas são as sobras da vitalidade de um universo que se banhou em coágulos derramados sem entender a razão. Para as duas, as causas do Brasil disparar contra o Paraguai não são claras. Menos claro ainda é o que ganhamos com esses disparos. Dacosta poderia ter essa resposta. Mas num diálogo (daqueles de a gente ver com caderninho, anotando palavra a palavra) sobre a analogia entre uma farda militar e uma batina, percebe-se que o soldado não sabe também por que raios sangrou.
Tudo parece se caminhar para uma homilia de cerca de 78 minutos sobre barbáries e utopias possíveis até que Rosemberg nos dá uma rasteira e, valendo-se de imagens de arquivo, lembra-nos de que o lobo do homem veste peles de cordeiro de grifes das mais distintas. Nesta operação, em homenagem assumida a Jean-Luc Godard e a Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, o realizador de Crônica de um Industrial (1976) mostra o poder autorregenerativo de um projeto artístico reconhecido desde os anos 1970, que agora, em parceria com novos talentos (a começar do produtor Cavi Borges), faz sua passagem para o pós-moderno, afinando-se com as angústias das novíssimas gerações. E isso se dá talvez porque as azias do Brasil de hoje, no torvelinho da História, sofram do eterno retorno das azias de ontem. Brincando de Nietzsche, Rosemberg faz uma genealogia da Moral brasileira, endurecendo carvões sob a forma de um filme com brilho de diamante.
Confira a lista de concorrentes da Semana dos Realizadores deste ano:
A casa cinza e as montanhas verdes, dir. Deborah Viegas, 15 min, 2016, SP
Abigail, dir. Isabel Penoni e Valentina Homem, 17 min, 2016, PE
As ondas, dir. Juliano Gomes e Léo Bittencourt, 12 min, 2016, RJ
Carnívora, dir. Arthur Tuoto, 63 min, 2016, P
Cisão, dir. Yuri Firmeza, 12 min, 2016, CE
Eclipse solar, dir. Rodrigo de Oliveira, 28 min, 2016, ES
Elon não acredita na morte, dir. Ricardo Alves Jr, 85 min, 2016, MG
Estado itinerante, dir. Ana Carolina Soares, 25 min, 2016, MG
Filme de aborto, dir. Lincoln Péricles, 60 min, 2016, SP
Há terra!, dir. Ana Vaz, 12 min, 2016, Brasil-França
Heaven, dir. Luiz Roque, 10 min, 2016, SP
Interlúdio, dir. Gabraz Sanna, 53 min, 2016, RJ
Kappa Crucis, dir. João Borges, 22 min, 2016, MG
Muito romântico, dir. Melissa Dullius e Gustavo Jahn, 72 min, 2016, Brasil-Alemanha
Nunca é noite no mapa, dir. Ernesto de Carvalho, 6 min, 2016, PE
O estranho caso de Ezequiel, dir. Guto Parente, 71 min, 2016, CE
Os pássaros estão distraídos, dir. Diogo Oliveira e João Vieira Torres, 71 min, 2016, RJ
Rifle, dir. Davi Pretto, 75 min, 2016, RS
Solon, dir. Clarissa Campolina, 16 min, 2016, MG
Sutis interferências, dir. Paula Gaitán, 75 min, 2016, RJ
Taego Ãwa, dir. Henrique Borela e Marcela Borela, 75 min, 2016, GO
Ventania, dir. Igor Câmara, 7 min, 2015, CE